O trabalho do pintor, para Picasso

I

Envolve este limão de branco de ovo informe
veste esse branco de ovo dum azul celeste suave e firme
mesmo se a linha direita e negra vem de ti
a alvorada está por detrás do teu quadro

um sem-número de muros se desmoronam
detrás do teu quadro e tu com o olho fixo
como um cego como um louco
tu levantas uma longa espada para o vazio

uma mão porquê não uma segunda mão
porque não a boca nua como uma pluma
porque não um sorriso e porque não as lágrimas
no rebordo da tela onde brincam as pontas de paris

eis o dia dos outros que deixa às sombras o seu acaso
e com um único movimento das pálpebras renuncia

II

Tu levantavas uma longa espada
Como uma bandeira ao vento contrário
levantavas o teu olhar contra a sombra e o vento
Das trevas confusas

Tu não quiseste dividir
Nada se espera do nada
A pedra não cairá sobre ti
Nem o elogio complacente

Duro detractor avança renunciando
Nasce o prazer no seio da tua recusa
A arte poderia ser um trejeito
Que tu reduzes para não ser que uma porta

Aberta por onde a vida entra

III

E a imagem convencional da uva
Presente no tapete a imagem
Convencional da espada

Levantada para o vazio ponto de exclamação
Ponto de espanto e de pasmo
Quem me poderá desaprovar

Quem te poderá acusar da pose
Imemorável do homem preso na sombra
Os outros são da sombra mas carregam
Um fardo tão pesado como o teu
Tu és um dos ramos da estrela da sombra
Que ocasiona a luminosidade

Aqueles que falam da sombra não nos fazem rir
Nos subterrâneos da morte
Aqueles que crêem no desastre e que seduzem a sua morte

De mil e uma verdades sem qualquer espinho
Nós transportamos sacos de carvão
Para o incêndio que nos confunde

IV

Tudo começa nas imagens
Dizem os loucos irmãos de nada
Eu incorporo pelas imagens
Todas as auroras ao imenso dia

Tenho a melhor consciência
que nossos desejos são gentis

doces e violentos como os falsos
na erva tenra e corada

Hoje nós queremos comer
Juntos ou então brincar e rir
Hoje queria ir
À União Soviética ou então descansar

Com meu coração para a esposa
com o poder de bem-fazer
E a esperança forte como uma coroa
De mãos atadas sobre um beijo

V

Picasso meu amigo demente
Fora de fronteiras meu lúcido amigo
nada existe na nossa terra
Que seja mais puro que teu nome

Gosto de o dizer amo enunciar
Que todos os teus gestos são assinados
Pois a partir daí os homens
ficam legitimados à sua grandeza

E a sua grandeza é diferente
Uma grandeza toda igual
Ela cabe num chão de pedra
Mordendo-se os desejos

VI

É sempre uma história de algas
De terrenos cabeludos
Uma história de amigos sinceros
Com febres de frutos maduros

De antigos mortos de jovens flores
Nas grinaldas incorruptíveis
A vida oferece o seu coração
A morte dá o seu segredo

Uma história de amigos sinceros
Através dos tempos familiares
A criação quotidiana
No saudação indiferente

VII

Que cortina, não há cortina
Mas algumas degraus a subir

Alguns degraus a construir
Sem cansaço e sem problemas
O trabalho advém prazer
Nunca duvidamos sabemos bem
Que o sofrimento é uma carga nós queremos
Textos novos telas virgens depois de amar

De olhos como espaldas
A vista como o horizonte
Mãos na soleira do conhecimento
Como biscoitos no vinho

E apenas um objectivo ser o melhor em tudo
Dia dividido caricia sem marcação
Caro camarada a ti o primeiro lugar
Último do mundo num mundo primeiro

Tradução: Fernando Oliveira

Este poema provém do tema intitulado “Poesia sem interrupção” de Paul Eluard – 1945

Sem comentários: