Liberdade

Nos meus cadernos de estudante
Na escrivaninha e nas árvores
Na areia nevada
Escrevo o teu nome

Nas páginas lidas
Em todas as páginas brancas
Pedra sangue papel ou cinza
Escrevo o teu nome

Nas imagens douradas
Nas armas dos guerreiros
Na coroa dos reis
Escrevo o teu nome

Na selva e no deserto
Nos ninhos entre as giestas
No eco da minha infância
Escrevo o teu nome

Nos meus trapos de caloiro
No açude de sol bafiento
No lago de lua esperta
Escrevo o teu nome

Nos campos no horizonte
Nas asas dos passarinhos
No moinho tenebroso
Escrevo o teu nome

Em cada sopro da manhã
No mar e nos navios
Na insensata montanha
Escrevo o teu nome

Na espuma das nuvens
E nos suores da borrasca
Na chuva densa e insípida
Escrevo o teu nome

Nas formas cintilantes
Nas cores dos sinos
Na verdade física
Escrevo o teu nome

Nos caminhos conscientes
Nas estradas estendidas
Nas praças que trasbordam
Escrevo o teu nome

Na lâmpada que se acende
E naquela que se apaga
Nas minhas razões reunidas
Escrevo o teu nome

No fruto cortado em dois
Do espelho e do meu quarto
Na cama concha vazia
Escrevo o teu nome

No meu cão glutão e terno
De orelhas levantadas
Na sua pata desastrada
Escrevo o teu nome

No limiar da minha porta
Nos objectos familiares
No rolo de fogo sagrado
Escrevo o teu nome

Em toda carne acordada
Na testa dos meus amigos
Em cada mão que se estende
Escrevo o teu nome

Na janela de surpresas
E nos lábios comoventes
Mais longe que o silêncio
Escrevo o teu nome

Nos refúgios destruídos
Nos meus faróis extintos
Nos muros do meu tédio
Escrevo o teu nome

Na vacuidade sem desejo
Na desnuda solidão
Nas escadas da morte
Escrevo o teu nome

Na saúde reencontrada
No risco extraviado
Na fé sem recordação
Escrevo o teu nome

E pelo poder duma palavra
Recomeço a minha vida
Nasci para te conhecer
Para te nomear.

Paul Eluard
in Poésies et vérités, 1942

Tradução: Fernando Oliveira

O trabalho do pintor, para Picasso

I

Envolve este limão de branco de ovo informe
veste esse branco de ovo dum azul celeste suave e firme
mesmo se a linha direita e negra vem de ti
a alvorada está por detrás do teu quadro

um sem-número de muros se desmoronam
detrás do teu quadro e tu com o olho fixo
como um cego como um louco
tu levantas uma longa espada para o vazio

uma mão porquê não uma segunda mão
porque não a boca nua como uma pluma
porque não um sorriso e porque não as lágrimas
no rebordo da tela onde brincam as pontas de paris

eis o dia dos outros que deixa às sombras o seu acaso
e com um único movimento das pálpebras renuncia

II

Tu levantavas uma longa espada
Como uma bandeira ao vento contrário
levantavas o teu olhar contra a sombra e o vento
Das trevas confusas

Tu não quiseste dividir
Nada se espera do nada
A pedra não cairá sobre ti
Nem o elogio complacente

Duro detractor avança renunciando
Nasce o prazer no seio da tua recusa
A arte poderia ser um trejeito
Que tu reduzes para não ser que uma porta

Aberta por onde a vida entra

III

E a imagem convencional da uva
Presente no tapete a imagem
Convencional da espada

Levantada para o vazio ponto de exclamação
Ponto de espanto e de pasmo
Quem me poderá desaprovar

Quem te poderá acusar da pose
Imemorável do homem preso na sombra
Os outros são da sombra mas carregam
Um fardo tão pesado como o teu
Tu és um dos ramos da estrela da sombra
Que ocasiona a luminosidade

Aqueles que falam da sombra não nos fazem rir
Nos subterrâneos da morte
Aqueles que crêem no desastre e que seduzem a sua morte

De mil e uma verdades sem qualquer espinho
Nós transportamos sacos de carvão
Para o incêndio que nos confunde

IV

Tudo começa nas imagens
Dizem os loucos irmãos de nada
Eu incorporo pelas imagens
Todas as auroras ao imenso dia

Tenho a melhor consciência
que nossos desejos são gentis

doces e violentos como os falsos
na erva tenra e corada

Hoje nós queremos comer
Juntos ou então brincar e rir
Hoje queria ir
À União Soviética ou então descansar

Com meu coração para a esposa
com o poder de bem-fazer
E a esperança forte como uma coroa
De mãos atadas sobre um beijo

V

Picasso meu amigo demente
Fora de fronteiras meu lúcido amigo
nada existe na nossa terra
Que seja mais puro que teu nome

Gosto de o dizer amo enunciar
Que todos os teus gestos são assinados
Pois a partir daí os homens
ficam legitimados à sua grandeza

E a sua grandeza é diferente
Uma grandeza toda igual
Ela cabe num chão de pedra
Mordendo-se os desejos

VI

É sempre uma história de algas
De terrenos cabeludos
Uma história de amigos sinceros
Com febres de frutos maduros

De antigos mortos de jovens flores
Nas grinaldas incorruptíveis
A vida oferece o seu coração
A morte dá o seu segredo

Uma história de amigos sinceros
Através dos tempos familiares
A criação quotidiana
No saudação indiferente

VII

Que cortina, não há cortina
Mas algumas degraus a subir

Alguns degraus a construir
Sem cansaço e sem problemas
O trabalho advém prazer
Nunca duvidamos sabemos bem
Que o sofrimento é uma carga nós queremos
Textos novos telas virgens depois de amar

De olhos como espaldas
A vista como o horizonte
Mãos na soleira do conhecimento
Como biscoitos no vinho

E apenas um objectivo ser o melhor em tudo
Dia dividido caricia sem marcação
Caro camarada a ti o primeiro lugar
Último do mundo num mundo primeiro

Tradução: Fernando Oliveira

Este poema provém do tema intitulado “Poesia sem interrupção” de Paul Eluard – 1945

Salvador Dali

É esticando a corda das cidades que desbotam
Que o soltar dos sexos nas províncias
Faz crescer os sentimentos decrépitos do pai
Na busca duma nova vegetação
Onde as noites em combustão
Proíbam ao local de mostrar o intuito do nariz

É lendo as sementes imperceptíveis dos desejos
Que a agulha cessa com delicadeza
Entre o último minuto da aranha e do narcótico

Na cerâmica do íris e do ponto de suspensão
Onde a agulha se amarra em torno da falsa coragem
Do dedo pudico e da paragem nas estações

É pavimentando as ruas com ninhos de pássaros
Que o piano confuso dos gigantes
Esquece em beneficio da fome
A grandeza da mudança dos cantos desmedidos
De dois seres que se afastam

É aceitando a serventia das ferramentas ferrugentas
Constatando apaticamente a boa fé do metal
Que as mãos se abrem às delicias dos perfumes
E outros pequenos diabos das festividades
No fundo dos bolsos riscados de vermelho

É agarrando-se a uma cortina de moscas
Que a enxuta pecadora se defende dos marinheiros
Besta e redonda como a maçã não se interessa pelo mar

A madeira que falta na floresta que nem ali está
O encontro que não aconteceu e para beber
A verdura nos copos e uma boca que não fora feita
Que para chorar uma arma único termo de comparação
Com a mesa com os copos com as lágrimas
E a sombra forja o esqueleto do cristal de rocha

É para não deixar vazios entre nós estes olhos nossos olhos
Que ela estende os seus braços nus
A garota sem jóias a garota nua de pele
Seria preciso para aqui e para além rochas e vagas
Mulheres para nos distrair e nos enroupar
Ou cerejas de esmeralda no leite do orvalho

Tantas madrugadas breves nas mãos
Tantos gestos maníacos para dissipar a insónia
Sob a trepidante noite da roupa
Face à escada em que cada degrau é o prato duma balança

Em frente dos pássaros treinados contra as correntes
A estrela pesada do bem-estar rasga as veias

Tradução: Fernando Oliveira
Este poema provém do tema intitulado : A vida imediata " de Paul Eluard- 1932 -

Man Ray

A agitação dum vestido que tomba
Depois um corpo simples sem nuvens
Venha assim confiar-me os seus charmes
Você que teve a sua parte de felicidade
E que muitas vezes chora o sinistro fado daquele que a fez feliz

Você que não tem vontade de pensar
Que nunca soube edificar um homem
Sem amar um outro

Nos espaços de marés dum corpo que se desnuda
À mama que se afigura ser crepúsculo
O olho passeia sobre as dunas distraídas
Onde as fontes guardam as unhas de mãos nuas

Vestígios da vanguarda nua face pálida sob as celhas do horizonte
Uma breve lágrima noiva do passado
Saber que o clarão foi fértil
Infantis andorinhas julgam que a terra é o céu

O quarto negro onde todos os calhaus do frio estão afiados
Não me digas que não tens medo
O teu olhar está ao nível do meu ombro
És bela demais para exaltar a castidade

No quarto negro onde mesmo o trigo
Nasce da gulodice

Ficas imutável
Estás só.

Tradução: Fernando Oliveira

Este poema provém do tema intitulado “ A rosa pública “ – 1933 – de Paul Eluard

George Braque

Um pássaro esvoaça,
Afastando as nuvens tal um véu inútil,
Nunca teve medo da luz,
Recluso do seu voo
Nunca teve sombra.

Conchas de colheitas despedaçadas pelo sol.
No bosque todas as folhas dizem que sim,
Elas só sabem dizer que sim,
A toda a questão toda resposta
E o orvalho gira no fundo desse sim.

Um homem de olhos suaves descreve o céu do amor.
Junta as maravilhas
Como num bosque as folhas,
Como os pássaros nas suas asas
E os homens no sono.

Tradução: Fernando Oliveira

Este poema provém do tema intitulado “ Capital da Dor “ 1924 de Paul Eluard

Max Ernst

Num canto o incesto hábil
Anda à volta da virgindade primaveril
Num canto o céu absorto
Com picos do tumulto deixa bolas brancas

Num canto o mais claro de todos os olhos
Esperam-se os peixes da angústia
Num canto o veículo de verdura do verão
Para sempre inerte e glorioso

No vislumbre da juventude
Das lâmpadas que ficaram acesas
A primeira mostra os seios que matam os insectos vermelhos

Tradução: Fernando Oliveira

Este poema provém do tema ‘ Repetições ‘ de Paul Eluard
- 1921 -

Nós fizemos a noite

Nós fizemos a noite
Acordado eu tomo a tua mão
nutrindo-te com todas as minhas forças
gravo na rocha a estrela da tua energia
com linhas profundas
onde a bondade do teu corpo germinará
Repito a tua voz escondida
a tua voz anunciada
Ainda gracejo da orgulhosa
que tu tratas como uma pedinte
dos malucos que respeitas
dos simples em quem te deleitas

E na minha cabeça que pouco a pouco se une à tua e à noite
fico maravilhado de tal mistério
tão parecido contigo e com tudo que amo
o que é continuamente invulgar

Tradução: Fernando Oliveira
- 1936-
Este poema foi extraído do tema intitulado “ Olhos férteis” Paul Eluard

Aquele de sempre, toda

Se vos disser: “que tudo abandonei”
é porque ela não pertence ao meu corpo não é verdade
mas nunca me gabei
e o nevoeiro profundo onde me movo
nunca soube se passei

o leque da sua boca, o clarão dos seus olhos
Sou o único afectado
o único que fala
neste espelho tão vão onde o ar me atravessa
um ar que tem um rosto amoroso, teu rosto
para ti que não tens nome e que os outros ignoram
o mar fala-te de mim, de mim o céu te fala
os astros te adivinham, as nuvens imaginam-te
e o sangue da generosidade
leva-te para as delicias
Eu canto a grande alegria de te cantar
a grande alegria de te ter, ou de te não ter
a pureza de te esperar, a inocência de te conhecer
tu que apagas o esquecimento, a esperança e a ignorância
que apagas o vazio e me fazes nascer
eu canto para cantar, amo-te para cantar
o mistério, onde o amor me cria e se liberta

tu és pura, tu és mais pura que eu mesmo

Tradução: Fernando Oliveira

Este poema pertence ao tema intitulado: Capital da dor- entre Outubro de 1924 e Agosto 1926 – Paul Eluard

A amorosa

Ela está de pé sobre as minhas pálpebras
e os seus cabelos se entrelaçam nos meus
Ela tem a forma das minhas mãos
e a cor dos meus olhos
Ela desaparece na minha sombra

Ela tem sempre os olhos abertos
e não me deixa dormir
Seus sonhos plenos de luz
fazem evaporar os sóis
Que me fazem rir, chorar e rir
Falar sem nada ter para dizer

Tradução: Fernando Oliveira

Este poema pertence ao tema intitulado “Capital da dor”
- entre 1914 et 1921 – de Paul Eluard

O fim do mundo

a André Breton

Os olhos cercados como as ruínas dos castelos
Um manto de valados entre ela e seu último olhar
Num delicioso dia de primavera
Quando as flores camuflam a terra
Aquele abandono de tudo
E os desejos dos outros à sua vontade
Sem que ela pense
A sua vã vida respira senão a vida
O seu peito não tem sombra e a face desconhece
Que o cabelo ondulado o embala obstinadamente.

Palavras que palavras preto ou Cévennes
Bambu respira ou coaxa
Falar é servir-se dos seus pés para caminhar
Das suas mãos para roçar os panos como um moribundo
Os olhos abertos não tem fechadura
Sem dificuldade temos na boca e nas orelhas
Uma marca de sangue não é um sol pesado
Nem a palidez uma noite sem sono que acaba.

A liberdade é tão incompreensível como a visita do médico
De que médico uma vela no deserto
No fundo do dia o ténue foco duma vela
A eternidade começou e acabará na cama
Mas para quem falas tu pois tu não sabes
Porque tu não queres saber
Pois não mais sabes
Por respeito
O que falar quer dizer.

Este poema provém do tema intitulado “ A vida imediata “

Tradução: Fernando Oliveira, do original – La fin du monde – de Paul Eluard